domingo, 9 de março de 2008

A guarda dos mandamentos

Que viagem rápida! Abria os olhos no meio de uma praça. Antes que voltasse à consciência, sentira estar subindo. Pela música e pelos altos portais de ouro maciço, deduziu onde estava. Procurou seu nome entre os dos aprovados. Surpreso, quis tratar com um responsável. “Guardei todos os mandamentos, mas…” “Seu nome não consta na lista, correto?” Como ele sabia? Deveriam ocorrer muitos casos desse tipo. Até aqui se enganam!… Foi consultado algo próximo a um pergaminho luminescente. “Vejamos… você sabe que a regra é simples: guardar os mandamentos é guardar os dez…” “Procedi assim! Veja desde o primeiro; Deus sempre esteve em primeiro lugar para mim.” “Porém, não uma nem poucas vezes, você se atrasou para o culto, porque queria dormir um pouco mais!” Emudeceu ante a lembrança. “E não só”, acrescentou seu interlocutor, com voz respeitosa: “Durante o culto, seus pés buscavam no pátio companhias e conversas mais interessantes. Quanto às reuniões feitas nas casas, sua fala interrompia o estudo da Sagrada Palavra de Deus – era o Criador sendo silenciado pela criatura.” “Bem, pode ser que cometi pequenas falhas no tocante a este mandamento, mas o segundo…” “‘Pequenas falhas’?!” Corou: um repreensor humano se mostraria sarcástico ou usaria de tom incriminatório; quem estava à sua frente manisfestava um pasmo que lhe desnudava da hipocrisia. Contudo, sem querer tocar a mesma tecla, seguia o outro: “Feita a menção ao segundo mandamento, cabe lembrar-lhe de que tudo o que ocupa o lugar de Deus é um deus rival, substituto do Verdadeiro. Se dormia a ponto de isto ser um empecilho à pontualidade quanto ao culto, no que diz respeito à televisão… para o aparelho, você sempre demonstrou assiduidade religiosa!” “Espera aí! Ao menos, honrei o nome do Senhor!” Houve silêncio. Desafiador o silêncio. As palavras ecoaram como um jarro vazio que, ao cair, espatifa-se todo. “Honrar o nome de Deus é honrá-Lo. Você o honrava de que maneira? Representando- O mal diante de seus amigos de festas, que não viam qualquer distinção entre suas atitudes e as deles? E quanto aos sites…” Teve de cortar cirurgicamente o anjo – a referência a certos particulares lhe desmoralizariam mais ainda: “Está certo, está certo! Errei um pouquin… quer dizer… eu errei bastante; você sabe, a carne é fraca – o próprio Cristo falou isto.” “E o fez não para desculpar o erro e, sim, para incentivar a devoção necessária a seres pecadores e fracos.” “Tudo bem, não é esse o ponto! Você olvida que sempre fui um zeloso guardador do dia do Senhor (fora os irrelevantes atrasos para o culto matutino).” “Atrasos que comumente chegavam à meia hora! Aliás, o quarto mandamento provê um dia para o descanso, e ordena seis para o trabalho. Você não trabalhava aos sábados – como também em dia algum! Preguiçosamente passava o dia no MSN ou jogando no computador; à tarde, ia à Academia. Com pais capazes de prover qualquer coisa, um emprego não se tornou sua necessidade ou preocupação.” Antes de argumentar novamente, revisou quieto os mandamentos restantes. Veio-lhe à lembrança o desrespeito aos pais, as brigas comuns com os irmãos mais novos e as coisas que “achava” na escola e levava para casa. Pensou igualmente nos sites (que o anjo começara a mencionar) e nas garotas com as quais ficou, enquanto ainda estava com sua última namorada. Muitas tinham sido as mentiras contadas aos pais, apenas para poder sair com os amigos. Sem contar na inveja, que fazia com que vivesse desejando ter as mesmas roupas de grife que via nos outros. Estava tudo ali. Não havia mais o que dizer. Abaixou a cabeça, sem se despedir. Queria dizer que sentia muito, mas o elevador já o estava esperando. O anjo que o atendera chegou a derramar uma lágrima, assim que ele desceu…

por Cleandro
cleandro@yahoo.com

fonte;
www.webservos.com.br